sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Liberalismo é pecado




                                                              D. Felix Sardà y Salvany
              

O Liberalismo – Parte 1




I
Existe hoje algo que se chama Liberalismo?
Certamente: e parecerá ocioso que demoremo-nos na demonstração deste asserto.
A não ser que todos nós, os homens de todas as nações da Europa e da América, regiões principalmente infestadas desta epidemia, tenhamos convencionado enganar-nos e fazer de enganados, existe hoje em dia no mundo uma escola, um sistema, um partido, uma seita, ou chamem-lhe como quiserem, que por amigos e inimigos é conhecida sob o nome de LIBERALISMO.
Os seus periódicos e associações e governos se apelidam, com toda a franqueza, liberais; os seus adversários lançam-lho em rosto, e eles não protestam, nem sequer o escusam ou atenuam. Mais ainda lê-se todos os dias que há correntes liberais, tendências liberais, reformas liberais, projetos liberais, personagens liberais, datas e recordações liberais, idéias e programas liberais; e pelo contrário chamam-se antiliberais, ou clericais, ou reacionários, ou ultramontanos, todos os conceitos opostos aos significados por aquelas expressões. Há, pois, no mundo atual uma certa coisa que se chama Liberalismo e há também outra certa coisa que se chama Antiliberalismo. É, pois, como muito judiciosamente se tem dito, palavra de divisão, pois tem perfeitamente dividido o mundo em dois campos opostos.
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Mas não é só palavra, pois a toda a palavra deve corresponder uma idéia; nem só idéia, pois a tal idéia vemos que corresponde de fato toda uma ordem de acontecimentos exteriores. Há, pois, Liberalismo, quer dizer, há doutrinas liberais e há obras liberais, e por conseguinte há homens liberais, que são os que professam aquelas doutrinas e praticam aquelas obras. E tais homens não são indivíduos isolados, mas que se conhecem e obram como agrupação organizada, com chefes reconhecidos, com dependência deles, com um fim unanimemente aceite. O Liberalismo, pois, não é só palavra e doutrina e obra, mas é também uma seita.
Fica, pois, assentado que quando tratamos do Liberalismo e de liberais não estudamos seres fantásticos ou puros conceitos de razão, mas verdadeiras e palpáveis realidades do mundo exterior. E bem verdadeiras e palpáveis por nossa desgraça!
Os nossos leitores sem dúvida terão observado que a primeira preocupação que se nota nos tempos de epidemia é sempre a de pretender que não existe tal epidemia. Não há memória, nas diferentes que nos tem afligido no século atual, ou nos séculos passados, de que nem uma só vez tenha deixado de se apresentar este fenômeno. A enfermidade tem já devorado no silêncio grande número de vítimas quando se começa a reconhecer que existe, dizimando a povoação. As participações oficiais são, algumas vezes, as mais entusiastas propagadoras da mentira; e tem-se dado casos em que por parte da autoridade se tem chegado a impor penas aos que afirmassem que o contágio era verdade. Análogo é o que acontece na ordem moral de que estamos tratando. Depois de cinqüenta anos, ou mais, de viver em pleno Liberalismo, temos ouvido a pessoas respeitabilíssimas perguntar com assombro e candidez: – Que! Tomais a sério isso de Liberalismo? Não serão, porventura, exagerações apenas do rancor político? Não seria melhor omitir esta palavra que nos divide e irrita? – Tristíssimo sinal quando a infecção está de tal sorte na atmosfera que, pelo hábito, já não a sentem a maior parte dos que a respiram!
Há, pois, Liberalismo, caro leitor; e disto não duvides nunca.
II
Que é o Liberalismo?
Ao estudar um objeto qualquer, depois da pergunta an sit?, faziam os antigos escolásticos a seguinte: Quid sit?; e esta é a de que nos vamos ocupar no presente capítulo.
O que é o Liberalismo? Na ordem das idéias é um conjunto de idéias falsas; na ordem dos fatos é um conjunto de fatos criminosos, conseqüência prática daquelas idéias.
Na ordem das idéias o Liberalismo é o conjunto do que chamam princípios liberais com as conseqüências lógicas que deles se derivam. Princípios liberais são: a absoluta soberania do indivíduo com inteira independência de Deus e da sua autoridade; soberania da sociedade com absoluta independência do que não provenha dela mesma; soberania nacional, isto é, o direito do povo para legislar e governar-se com absoluta independência de todo o critério que não seja o da sua própria vontade expressa primeiro pelo sufrágio e depois pela maioria parlamentar; liberdade de pensamento sem limitação alguma em política, em moral ou em religião; liberdade de imprensa, igualmente absoluta ou insuficientemente limitada; liberdade de associação com igual latitude. Estes são os chamados princípios liberais no seu mais cru radicalismo.
O fundo comum de todos eles é o racionalismo individual, ou racionalismo político, e o racionalismo social. Derivam-se deles aliberdade de cultos mais ou menos limitada; a supremacia do Estado em suas relações com a Igreja; o ensino leigo ou independente sem nenhum laço com a religião; o matrimônio legalizado e sancionado pela intervenção exclusiva do Estado; a sua última palavra, a que abarca tudo e tudo sintetiza, é a palavra secularização, quer dizer, a não intervenção da religião em nenhum ato de vida pública, verdadeiro ateísmo social, que é a última conseqüência do Liberalismo.
Na ordem dos fatos o Liberalismo é um conjunto de obras inspiradas por aqueles princípios e reguladas por eles. Como, por exemplo, as leis de desamortização, a expulsão das ordens religiosas; os atentados de todo o gênero oficiais e extra-oficiais, contra a liberdade da Igreja; a corrupção e o erro publicamente autorizado na tribuna, na imprensa, nas diversões, nos costumes; a guerra sistemática ao catolicismo, que apodam com os nomes de clericalismo, teocracia, ultramontanismo, etc., etc.
É impossível enumerar e classificar os fatos que constituem o proceder prático liberal, pois compreendem desde o ministro e o diplomata, que legislam ou intrigam, até ao demagogo, que perora no clube ou assassina na rua; desde o tratado internacional ou a guerra iníqua que usurpa ao Papa e o seu principado temporal, até a mão cobiçosa que rouba o dote da religiosa, ou se apodera da lâmpada do altar; desde o livro profundo e sabichão que se dá como texto na Universidade ou no instituto, até à vil caricatura que regozija os freqüentadores de taberna. O Liberalismo prático é um mundo completo de máximas, modas, artes, literatura, diplomacia, leis, maquinações e atropelamentos completamente seus. É o mundo de Lusbel, hoje disfarçado com aquele nome, e em radical oposição e luta com a sociedade dos filhos de Deus, que é a Igreja de Jesus Cristo.
Eis aqui, pois, retratado, como doutrina e como prática, o Liberalismo.


O Liberalismo – Parte 2


III
Se é pecado o Liberalismo, e que pecado é
O Liberalismo é pecado, quer se considere na ordem das doutrinas, quer na ordem dos fatos.
Na ordem das doutrinas é pecado grave contra a fé, porque as suas doutrinas são heréticas. Na ordem dos fatos é pecado contra os diversos mandamentos da lei de Deus e da sua Igreja, porque a todos viola. Na ordem das doutrinas o Liberalismo é a heresia universal e radical, porque as compreende todas; na ordem dos fatos é a infração radical e universal, porque a todas autoriza e sanciona.
Procedamos por parte na demonstração. Na ordem das doutrinas o Liberalismo é heresia. Heresia é toda a doutrina que nega, com negação formal e pertinaz, um dogma da fé cristã. O Liberalismo-doutrina nega-os a todos, primeiramente em geral, e depois a cada um em particular. Nega-os a todos em geral quando afirma ou supõe a independência absoluta da razão individual no indivíduo, e da razão social ou critério público na sociedade. Dizemos afirma, ou supõe, porque às vezes nas conseqüências secundárias não se afirma o princípio liberal, mas dá-se já por suposto ou admitido. Nega a jurisdição absoluta de Cristo Deus sobre os indivíduos e as sociedades, e por conseqüência a jurisdição delegada que sobre todos e cada um dos fiéis, de qualquer condição e dignidade que sejam, recebeu de Deus, o Cabeça visível da Igreja.
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Nega a necessidade da divina revelação, e a obrigação que tem o homem de admiti-la, se quer alcançar o seu último fim. Nega o motivo formal da fé, isto é, a autoridade de Deus que revela, admitindo da doutrina revelada só aquelas verdades que o seu curto critério alcança. Nega o magistério infalível da Igreja e do Papa, e portanto todas as doutrinas por ele definidas e ensinadas. E, depois desta negação geral e em globo, nega cada um dos dogmas, parcialmente ou em concreto, à medida que, segundo as circunstâncias, os encontram opostos ao seu critério racionalista. Assim, nega a fé recebida no batismo quando admite a igualdade de cultos; nega a santidade do matrimônio quando sustenta a doutrina do chamado matrimônio civil; nega a infalibilidade do Pontífice Romano quando recusa admitir como lei os seus mandatos e ensinamentos e ensinos oficiais, sujeitando-os ao seu passe ou exequatur, não como no princípio para assegurar-se da sua autenticidade, mas para julgar do seu conteúdo.
Na ordem dos fatos é imoralidade radical. E isto porque destrói o princípio ou regra fundamental de toda a moralidade, que é a razão eterna de Deus impondo-se à razão humana; canoniza o absurdo princípio da moral independente, que é no fundo a moral sem lei, ou o que é o mesmo, a moral livre, uma moral que não é moral, pois a idéia de moral, além da sua condição diretiva, encerra essencialmente a idéia de restrição ou limitação. Demais, o Liberalismo é todo imoralidade, porque em seu processo histórico cometeu e sancionou como lícita a infração de todos os mandamentos, desde o que ordena o culto de um só Deus, que é o primeiro do Decálogo, até ao que prescreve o pagamento dos direitos temporais à Igreja que é o último dos cinco desta.
Por isto se pode dizer que o Liberalismo, na ordem das idéias, é erro absoluto, e na ordem dos fatos, desordem absoluta. E por ambos os conceitos é pecado, ex genere suo gravíssimo: é pecado mortal.
IV
Da especial gravidade do pecado Liberalismo
Ensina a teologia católica que nem todos os pecados graves são igualmente graves, ainda dentro da sua condição essencial, que os distingue dos pecados veniais. Há graus no pecado, ainda dentro da categoria de pecado mortal, como há graus na obra boa dentro da categoria da obra boa e ajustada à lei de Deus. Assim o pecado direto contra Deus, como a blasfêmia, é pecado mortal mais grave em si, do que o pecado direto contra o homem, como é o roubo. Pois bem, à exceção do ódio formal contra Deus, que é o maior dos pecados e que raríssimas vezes se comete pela criatura, a não ser no inferno, os pecados mais graves de todos são os pecados contra a fé! A razão é evidente. A fé é o fundamento de toda a ordem sobrenatural; o pecado é tal enquanto ataca qualquer dos pontos desta ordem sobrenatural; é, pois, pecado máximo o que ataca o fundamento máximo daquela ordem. Um exemplo esclarecerá. Se se dá um golpe numa árvore cortando-lhe qualquer dos seus ramos, se lhe faz maior golpe quanto mais importante é o ramo que se corta; se lhe dá golpe máximo ou radical, se se corta a árvore pelo seu tronco ou raiz. Santo Agostinho, citado por Santo Tomás falando do pecado contra a fé, diz com precisão incontestável: Hoc est peccatum quo tenentur cuncta peccataPecado é este em que se contêm todos os pecados. E o mesmo Anjo das Escolas discorre sobre este ponto, como sempre, com sua costumada clareza. Um pecado, diz ele, é tanto mais grave, quanto por ele o homem mais se separa de Deus. Pelo pecado contra a fé o homem separa-se o mais que pode de Deus, pois priva-se do seu verdadeiro conhecimento: por onde, conclui o santo Doutor, o pecado contra a fé é o maior que se conhece.
Todavia, é maior ainda o pecado contra a fé, quando não é simplesmente carência culpável desta virtude e conhecimento, mas negação e combate formal contra dogmas formal e expressamente definidos pela revelação divina. Então o pecado contra a fé, de si gravíssimo, adquire uma gravidade maior, que constitui o que se chama heresia. Inclui toda a malícia da infidelidade mais o protesto expresso contra um ensinamento da fé, ou adesão expressa a um ensinamento que por falso e errôneo é condenado pela mesma fé. Acrescenta ao pecado gravíssimo contra a fé a obstinação e contumácia nele, e uma certa orgulhosa preferência da própria razão sobre a razão de Deus.
Portanto, as doutrinas heréticas e as obras heréticas constituem o maior pecado de todos, à exceção do ódio formal a Deus, do qual, como já dissemos, só são capazes, comumente, o demônio e os condenados.
Conseguintemente, o Liberalismo, que é heresia, e as obras liberais, que são obras heréticas, constituem o pecado máximo que se conhece no código da lei cristã.
Logo (salvo os casos de boa fé, de ignorância e indeliberação), ser liberal é maior pecado do que ser blasfemo, ladrão, adúltero ou homicida, ou qualquer outra coisa das que a lei de Deus proíbe e a sua justiça infinita castiga.
Não o entende assim o moderno Naturalismo, mas sempre assim o creram as leis dos Estados cristãos até ao advento da presente era liberal; assim o prossegue ensinando a lei da Igreja, e assim o continua julgando e condenando o tribunal de Deus. Sim, a heresia e as obras heréticas são os piores pecados de todos, e por isso o Liberalismo e os atos liberais são, ex genero suo, o mal sobre todo o mal.

O Liberalismo – Parte 3


V
Dos diferentes graus que pode haver e há dentro da unidade específica do Liberalismo
O Liberalismo, como sistema de doutrinas, pode chamar-se escola; como organização de adeptos para difundi-las e propagá-las, seita; como agremiação de homens dedicados a fazê-las prevalecer na esfera do direito público, partido. Porém, ou se considere como escola, ou como seita, ou como partido, o Liberalismo oferece dentro da sua unidade lógica e específica vários graus ou matizes que ao teólogo cristão convém estudar e expor.
Primeiramente, convém fazer notar que o Liberalismo é uno, isto é, constitui um organismo de erros perfeita e logicamente concatenados, razão por que se chama sistema. Com efeito, partindo do princípio fundamental de que o homem e a sociedade são perfeitamente autônomos ou livres, com absoluta independência de todo outro critério natural ou sobrenatural, que não seja o individual, segue-se, por uma perfeita ilação de conseqüências, tudo o que em nome dele proclama a demagogia mais avançada.
A Revolução só tem de grande a sua inflexível lógica. Até os atos mais despóticos que executa em nome da liberdade, e que à primeira vista todos tachamos de monstruosas inconseqüências, obedecem a uma lógica altíssima à superior. Pois que, reconhecendo a sociedade por única lei social o critério da maioria, sem outra norma ou regulador, como poderá negar-se ao Estado o perfeito direito de cometer quaisquer tropelias contra a Igreja todas as vezes que, segundo aquele seu único critério social, seja conveniente cometê-las? Admitindo-se que a razão está sempre da parte da maioria, fica por esse modo admitida como única lei a do mais forte; e portanto muito logicamente se pode chegar até às últimas brutalidades.
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Mas, apesar desta unidade lógica do sistema, os homens não são lógicos sempre; e isto produz dentro daquela mesma unidade a mais assombrosa variedade, ou gradação de tintas. As doutrinas derivam necessariamente e por virtude própria umas das outras; os homens, porém, são comumente ilógicos e inconseqüentes.
Os homens, levando até às últimas conseqüências os seus princípios, deveriam ser todos santos, quando os princípios fossem bons; e todos demônios do inferno, quando os princípios fossem maus. É a inconseqüência que, dos homens bons e maus, faz bons a meia bondade, e maus que o não são inteiramente.
Aplicando estas observações ao presente assunto do Liberalismo, diremos que liberais completos se encontram relativamente poucos, louvores a Deus; o que não obsta a que os outros, sem mesmo haverem chegado ao último limite da depravação liberal, sejam, contudo, verdadeiros liberais, isto é, verdadeiros discípulos, sectários ou partidários do Liberalismo, considerado como escola, seita ou partido.
Examinemos estas variedades da família liberal.
Há liberais que aceitam os princípios, porém rejeitam as conseqüências, pelo menos as mais duras e extremas.
Outros aceitam uma ou outra conseqüência, ou aplicação que lhes agrada, fazendo-se, porém, escrupulosos em aceitar radicalmente os princípios.
Quereriam uns o Liberalismo aplicado somente ao ensino; outros à economia civil; outros apenas às formas políticas. Só os mais avançados apregoam a sua natural aplicação a tudo e para tudo.
As restrições e mutilações do credo liberal são tantas, quantos os interesses por sua aplicação prejudicados ou favorecidos; pois existe geralmente o erro de crer que o homem pensa com a inteligência, quando o mais vulgar é que pensa com o coração, e muitas vezes também com o estômago.

Daqui os diferentes partidos liberais que apregoam Liberalismo de mais ou menos graus, como mais ou menos graduada, a gosto do consumidor, expõem o taberneiro a sua aguardente.
Daqui o não haver liberal para quem o vizinho mais avançado não seja um brutal demagogo, ou o menos avançado um furibundo reacionário. É assunto de escala alcoólica, e nada mais.
Assim, pois, tanto os que hipocritamente batizaram em Cadiz o seu Liberalismo com a invocação da Santíssima Trindade, como os que nestes últimos tempos lhe deram por emblema: – Guerra a Deus!, estão todos dentro da tal escala liberal; e a prova é que todos aceitam e em última análise invocam este denominador comum. O critério liberal ou independente é um entre eles, ainda que sejam, em cada um, mais ou menos acentuadas as aplicações.
De que depende esta maior ou menos acentuação? – Muitas vezes dos interesses; não poucas do temperamento; de certas influências de educação, que impedem uns de tomar o passo precipitado que tomam outros; de respeitos humanos talvez, ou considerações de família; de relações ou amizades contraídas, etc., etc. Isto sem contar a tática satânica que às vezes aconselha o homem a não propalar uma idéia para não produzir alarme, e para lograr torná-la mais viável e insinuante; o que sem juízo temerário se pode afirmar de certos liberais conservadores, em quem o conservador não costuma ser mais a máscara ou disfarce do franco demagogo. Contudo, na generalidade dos semiliberais, a caridade pode supor certa dose de candura e de natural bonhomia ou bobice, que se não os faz de todo irresponsáveis, como diremos depois, obriga não obstante a ter-se para com eles alguma compaixão.
Fica pois averiguado, curioso leitor, que o Liberalismo é um só, há porém liberais, como o mau vinho, de diferente cor e sabor.
VI
Do chamado Liberalismo Católico ou Catolicismo Liberal
De todas as inconseqüências e antinomias que se encontram nas escalas médias do Liberalismo, a mais repugnante de todas e a mais odiosa é a que pretende nada menos que a união do Liberalismo com o Catolicismo, para formar o que se conhece na história dos modernos desvarios pelo nome de Liberalismo Católico ou Catolicismo Liberal. O que não obsta tenham pago tributo a este absurdo inteligências preclaras e corações honradíssimos, que não podemos deixar de crer bem intencionados. O Liberalismo teve sua época de moda e prestígio, que, graças ao céu, vai passando, ou já passou.
Este funesto erro teve princípio num desejo exagerado de estabelecer conciliação e paz entre doutrinas que forçosamente e por sua essência são inconciliáveis e inimigas.
O Liberalismo é o dogma da independência absoluta da razão individual e social; o Catolicismo é o dogma da sujeição da razão individual e social à lei de Deus. Como conciliar o sim e o não de tão opostas doutrinas?
Aos fundadores do Liberalismo Católico pareceu coisa fácil. Excogitaram uma razão individual, ligada à lei do Evangelho, porém, coexistindo com ela uma razão pública ou social livre de toda a coerção. Disseram: O Estado, como tal, não deve ter religião, ou deve tê-la somente até certo ponto, que não vá incomodar os que não queiram tê-la. Assim, pois, o cidadão particular deve sujeitar-se à revelação de Jesus Cristo; porém o homem público deve, como tal, portar-se como se para ele não existira a dita revelação.
Desta maneira forjaram a célebre fórmula: A Igreja livre no Estado livre, fórmula para cuja propagação e defesa se ajuramentaram em França vários católicos insignes, entre eles um ilustre Prelado; fórmula, que devia ser suspeita, desde que a tomou Cavour para arvorá-la em bandeira da revolução italiana contra o poder temporal da Santa Sé; fórmula, de que, apesar do seu evidente desastre, não consta que seus autores se hajam retratado ainda.
Não chegaram a ver estes esclarecidos sofistas, que, se a razão individual era obrigada a submeter-se à lei de Deus, não podia declarar-se isenta dela a razão pública ou social sem cair num dualismo extravagante, que submete o homem à lei dos critérios opostos e de duas opostas consciências. Pois que a distinção do homem, em particular e cidadão, obrigando-o no primeiro caso a ser cristão e permitindo-lhe ser ateu no segundo, caiu imediatamente por si sob o peso esmagador da lógica integralmente católica. O Syllabus, de que adiante falaremos, acabou de desfazê-la sem remissão.
Ficou, todavia, desta brilhante – porém funestíssima – escola um ou outro discípulo tardio, que, não se atrevendo já a sustentar em público a teoria católico-liberal, de que fora outrora fervoroso panegirista, segue-a, contudo, obedecendo-lhe ainda na prática, talvez sem se aperceber de que se propõe pescar com redes, que, por velhas e conhecidas, o diabo mandou já recolher.


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